Curiosidades sobre a criança que “só fala a língua dela”
Por vezes, educadoras, pais e/ou familiares percebem que algo se passa com o discurso da criança ou que existe alguma dificuldade, não conseguindo identificar a área em concreto que está alterada e que faz com que essa criança não demonstre as competências típicas para a sua faixa etária.
Para melhor compreender estas questões é preciso entender a diferença entre as seguintes áreas:
COMUNICAÇÃO, LINGUAGEM, LÍNGUA e FALA
- COMUNICAÇÃO é um processo de troca de informação com o objetivo de influenciar o comportamento do recetor.
A informação pode ser partilhada de várias formas – verbais (escrita e/ou falada) ou não-verbais (choro, gestos, postura, olhar, expressão facial, toque, etc.).
É um processo complexo que não é exclusivo da espécie humana!
- LINGUAGEM é uma competência inata da espécie humana, através da qual se desenvolve a capacidade de receber, transformar e transmitir a informação.
Para que haja receção, tem de haver compreensão – linguagem compreensiva.
Para que haja transmissão, é necessário reformular a informação recebida – linguagem expressiva.
A linguagem organiza-se em diferentes domínios, sendo o resultado do recrutamento de várias áreas cerebrais, cada uma destinada a um conjunto de aspetos que a linguagem engloba:
SEMÂNTICA, PRAGMÁTICA, MORFOLOGIA, SINTAXE, FONOLOGIA, LÍNGUA e FALA
- SEMÂNTICA trata da construção do conhecimento conceptual, do significado das palavras e da interpretação das suas combinações.
Uma criança sabe o que é um livro pois convive com vários, ouvindo o seu nome e percebendo as características do mesmo, identificando-o e diferenciando-o de outras palavras que se possam relacionar com ele – redes semânticas.
Inicialmente, a criança apercebe-se apenas das características globais do mundo externo, usando uma designação para vários elementos da mesma rede semântica – cão pode referir-se a qualquer animal.
- PRAGMÁTICA permite a adaptação e adequação da linguagem ao tipo de contexto social, permitindo compreender aspetos da linguagem que não são literais.
É a pragmática que permite à criança desenvolver a capacidade de entender piadas, anedotas e provérbios.
- MORFOLOGIA serve para a criação de palavras novas, estabelecendo relações entre palavras e gerando outras através de junções de partes (princesa/princesinha), flexão verbal em género (masculino/feminino), número (singular/plural), pessoa (eu/tu/ele/etc.) e conjugação verbal (presente/pretérito/futuro/etc.), trazendo mais significados à linguagem.
A captação das regras morfológicas e consequente tentativa de aplicação na linguagem é observável quando a criança, intuitivamente, diz coisas incorretamente como “eu di [dei]” ou “eu fazi [fiz]”, mostrando que já empregam a regra de que o verbo no tempo pretérito conjugado na primeira pessoa geralmente termina com “i” no português europeu e brasileiro.
- SINTAXE confere competências para a criação de frases, para a organização das palavras nas mesmas e para o estabelecimento de relação lógica das frases entre si.
Ao perceber qual é a organização habitual da sua língua e quais as formas de ligar duas ou mais orações, a criança é capaz de passar a dizer, por exemplo, que “o copo caiu, MAS não se partiu”.
- FONOLOGIA dá informação dos sons – fonemas – disponíveis na língua que se está a utilizar, analisando a alteração dos mesmos quando combinados e que implicam diferenças de significado, como na organização das sílabas, pronúncia das palavras, entoação e acentuação.
A morfologia usa a fonética – produção oral – para se materializar, enquanto que a fonologia analisa os sons na forma como as consoantes e vogais são pronunciadas pelos humanos durante a fala, permitindo a distinção entre, por exemplo, “público” e “publico”.
- LÍNGUA trata-se de um conjunto de palavras que detém significado para uma determinada comunidade, estabelecendo um código verbal que corresponde a uma convenção cultural que não é estática, podendo mudar, evoluir ou ser imposta por acordos ortográficos.
Na ausência de limitações, a criança tem a capacidade de adquirir, desenvolver e usar a linguagem através da(s) língua(s) a que é exposta precocemente.
- FALA é o modo como se comunica oralmente que, estando diretamente relacionada com a língua, trata-se de um ato individual afetado pela linguagem, por costumes locais ou sotaques.
Para a sua manifestação, a criança pode escolher os elementos da língua que lhe forem convenientes, preferíveis ou necessários, tendo em conta o contexto, a experiência, a personalidade ou o ambiente sociocultural.
Joana Vitorino
Terapeuta da fala